
padrinho
Frederico Araujo

não, batizado nunca fui. quer dizer, não lembro nem de contação ou foto. mas devo ter sido, católicos que eram. e depois o trágico catecismo. é, devo ter sido. não é prova, mas a ele diziam meu padrinho. ele me dizia pupilo, o que eu não gostava sem saber o que era. mas nunca falei. eu o chamava dindinho, na esperança de um presente. cara larga, terno preto de riscas, gravata escura, prendedor de rubi. eu nem desconfiava o que era, mas não desgrudava os olhos daquele pingo vermelho vivo. nem dava bola ao vistoso anel, ouro e pedra vermelha retangular que ele parecia querer exibir quando manejava talheres. talheres de prata, não sei como naquela pobre casa de mulheres. casa da vó. ele, cara larga, largas entradas, cabelos grisalhos penteados para trás, sempre brilhantes. brilhantina glostora. eu de gumex [dura lex, sed lex, no cabelo só gumex], topete armado e calça curta. casa da vó, ele e eu, vila isabel. eu de neto primeiro. ele de primeiro noivo da jovem tia mais velha. noivo eterno, ouvi em noites insones. tem amante. ouvi em sussurros, ou imaginei ouvir quando essas noites eram de silêncios. não sabia o que era isso, mas boa coisa não parecia ser. palavras sussurradas me davam medo. sentado de frente pra mim comia alface no jantar. faz a gente ficar bonito, repetia e repetia e comia alface. devia ter acreditado. até que um dia anunciaram casamento. a tia rodopiava beleza e frescor. ele, arroubos de cinquentão. casa montada de pátio interno, tres quartos, duas salas. no aldeia campista. não longe da vila isabel da vó. ao lado da casa da amante, ouvi em noite de calor insano e enxame de baratas. vão passar lua de mel na europa, ouvi em noite de lua cheia que uma nuvem logo cobriu. viagem de navio. devia ser longe, imaginei. do casamento mesmo, nenhuma lembrança. nem de contação ou mexerico nos depois. só o descasamento ficou gravado como talho em pedra. na casa nova da tia, manhã de sol, a mãe e a tia em arrumação de malas para a tal lua de mel. eu chutando bola no pátio interno quando a vizinha apareceu, não a que diziam amante, a do outro lado, cabeça sobre o muro. querido, chama tua tia. não sei se falou mesmo querido, mas fui chamar. a tia disparou casa adentro quando a vizinha disse que tinham telefonado da igreja avisando que o padrinho estava passando mal. não, não disseram padrinho, disseram desembargador. é claro. ah, um detalhe: a tia e o padrinho não tinham telefone, coisa rara na época aqueles pretos de discar. a mãe, parece que adivinhando ficou paralisada. a vizinha em surdina disse peremptória: vai com ela que ele morreu. eu não sabia bem o que era isso, morrer. afinal tinha nascido há pouco. olhei pra mãe. a mãe como que acordando de um sonho estranho me abraçou. logo um táxi preto em disparada, a tia segurando uma latinha com coisas de injeção. o coração do padrinho já havia gaguejado algumas vezes. a mãe puxa uma ave maria, a tia fala sem parar do trânsito emperrado e do recém marido. não devia ter ido. não precisava dessa missa. falei. muita cafajestagem. ele fica uma pilha. mas voce o conhece, minha irmã. quando encasqueta, nem deus! vento correndo pela janela do táxi. a mãe puxa outra ave maria, as mãos dadas. e eu. igreja no centro. missa de ação de graças pela posse como desembargador, depois disseram. na frente da igreja a tia dispara, a saia rodada rodando. sapato alto, que disso não abro mão. na porta da igreja um sujeito com jeito de sacristão berra querendo conter a invasão profana: a senhora não pode entrar porque tem um morto aí dentro. ele está deitado em cadeiras enfileiradas na sacristia, mãos cruzadas no peito. ela ajoelhada, cabeça em suas mãos, chora e fala coisas que não entendo, a voz lacrimosa em borbotões. filme passando, como se fosse hoje. seringa, agulha e ampola largados no chão. de repente pega seu braço e levanta. ou tenta levantar. o braço, rebelde, volta como mola esticada ou elástico de atiradeira. eu, calça curta de suspensório, sem camisa, sem saber chorar. chorar conforta o morrer, mas eu ainda não sabia. pensava no pintarroxo que tinha sumido. ele, terno preto de riscas, gravata escura, prendedor de rubi, anel de pedra vermelha retangular. ele, padrinho bonito, cara larga, olhar já sem viço, cabelo brilhante de glostora. sem mais tempo pra chorar. sem mais tempo ao amor. eu, calça curta de suspensório, sem camisa, o topete de gumex desabado. no colo da mãe, sem saber chorar. sem saber saber. sem saber